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terça-feira, 28 de agosto de 2012

Cineclube Indaiatuba exibe "A Febre do rato" hoje

Nanda Costa e Irandhir Santos em cena do filme, rodado em preto e branco
"Febre do Rato", terceiro longa de Cláudio Assis ("Amarelo Manga", "Baixio das Bestas") é o cartaz de hoje do Cineclube Indaiatuba, com sessão única às 19h45, seguida por um bate-papo com o público. O título se refere a uma expressão popular típica de Recife, que designa alguém quando está fora de controle, alguém que está danado. E é assim que Zizo, um poeta inconformado e de atitude anarquista, chama um pequeno tablóide que ele publica as próprias custas. Vivendo em um mundo particular, Zizo se depara com Eneida, uma jovem de aproximadamente 18 anos, que instiga e promove a transformação do poeta.
No elenco estão Irandhir Santos (o deputado de "Tropa de Elite 2", que já trabalhou com Assis em "Baixio das Bestas"), Nanda Costa ("Bezerra de Menezes"), Matheus Natchergaele (ator fetiche do diretor, presente em seus tres longas), Juliano Cazarré ("Assalto ao Banco Central", "Bruna Surfistinha") e as veteranas Maria Gladys ("Os Fuzis", "Todas as mulheres do mundo") e Ângela Leal ("Perdoa-me por te traíres", "Zuzu Angel").
Segue uma resenha do meu amigo Clóvis Gruner, ex-jornalista, historiador e professor universitário em Curitiba.

Em sua crítica a “Febre do rato” (2011), do diretor pernambucano Claudio Assis, o crítico Inácio Araújo afirma que se trata de um filme “feito porque tem algo a dizer, não porque tem um negócio a fazer”. A frase me parece sintetizar não apenas este, mas a breve e intensa filmografia de Assis, composta de alguns curtas e de outros dois longas: “Amarelo manga”, de 2002, seu filme de estreia; e “Baixio das bestas”, de 2006. Li recentemente em um site de cinema, uma crítica comparado-o a Glauber Rocha. A aproximação não me parece pertinente: Glauber Rocha e o Cinema Novo, Glauber principalmente, tinham uma dicção politizante, um indisfarçável tom messiânico em sua pretensão a fazer do cinema uma experiência conscientizadora. O pernambucano me parece muito mais próximo do Cinema Marginal, contemporâneo do Cinema Novo mas, diferente deste, despretensioso, debochado, iconoclasta, sem por isso renunciar à sua dimensão crítica e incômoda. Aliás, arrisco dizer que Assis é, no cinema brasileiro atual, o principal herdeiro de um Rogério Sganzerla, que soube como poucos transitar entre a erudição e o escracho, articular o exame crítico e o riso cínico – e quem viu “Luz nas trevas”, esforço bem sucedido de Helena Ignez e Icaro Martins em levar às telas o roteiro que Sganzerla não teve tempo de filmar, sabe do que estou a falar.

Pois bem, assisti “Febre do rato” ontem à tarde. Não sei se é o melhor filme de Assis, não sei se é o que mais gostei, porque oscilo ainda entre este e “Amarelo manga” – “Baixio das bestas”, admito, é o lanterninha da lista. Mas talvez melhor que estabelecer qual o melhor ou de qual gostei mais, seja pensá-lo como o fim de um percurso, iniciado há uma década com “Amarelo manga”. Não sei também se Assis pretendeu compor uma trilogia, mas é assim que percebo este arco de histórias pelo tanto que tem em comum: da paisagem pernambucana – a capital, Recife, em “Amarelo...” e “Febre...”, a Zona da Mata em “Baixio...” –; a alguns “atores fetiches”, principalmente Matheus Nachtengaele, presente nos três filmes, ou Dira Paes, que faz uma ponta neste último; passando pelo olhar que procura apreender as vidas em risco, experiências e vivências marginais, não são poucos os elementos comuns que corroboram para a sensação de que um filme se desdobra em outro, uma história encontra outra.

Por outro lado, cada película carrega especificidades. Em “Amarelo...” são as múltiplas realidades e possibilidades de sobrevivência em uma realidade urbana precária o foco de interesse. Os personagens, em sua maioria vivendo no ou em torno ao Texas Hotel, tem suas existências atravessadas pela violência em suas muitas formas – institucional, econômica, social, simbólica, etc. –; se resistem e sobrevivem a ela o fazem mais por inércia e necessidade. Trata-se de um universo quase estático, praticamente imóvel, incapaz de se transformar e de autorizar qualquer mudança em suas personagens: da primeira à última cena, há uma pobreza, um desamparo, uma impotência que nada nem ninguém podem mudar.

Esta opção é radicalizada em “Baixio das bestas”, dos três talvez o mais contundente, cru em sua violência desmedida e sem vergonha mas que, registre-se, pouco tem a ver com a estetização da violência que é marca de parte significativa do cinema brasileiro recente, de “Cidade de Deus” a “Tropa de elite”. A escolha de deslocar a trama da capital para a Zona da Mata já é em si significativa, porque parece revelar a intenção de tecer uma narrativa ainda mais claustrofóbica e asfixiante que “Amarelo...”. Como bem definiu um crítico à época do seu lançamento, é um “filme parado no tempo de um Brasil arcaico, que se recusa a mudar”. Ao longo de pouco mais de uma hora, somos confrontados com espancamento de mulheres, exploração de menores, pedofilia, sodomia, estupro... Em certo momento, o personagem de Matheus Nachtengaele nos provoca: “Tá sentindo um cheiro estranho? É a podridão do mundo”. Eis, em uma pergunta e sua resposta, aquilo que o filme se propõe mostrar.

Este “Febre do rato” é diferente. Há, por certo, a periferia recifense e os despossuídos que nela habitam. Mas há, por outro lado, uma disposição a afirmar a vida para além de qualquer risco. Zizo – interpretado por Irandhir Costa –, personagem central da história, não é apenas um poeta, mas um poeta que fez de sua vida uma obra de arte: vive intensa e plenamente o que pensa, sente e escreve. Em torno a ele, bebendo cachaça e cerveja, fumando maconha, trepando, orbitam personagens que experimentam, igualmente, modos alternativos de existência. Amigos e libertários – no sentido anarquista da palavra, importante que se registre –, eles são “pobres, pontiagudos, anárquicos”, na feliz definição de Inácio Araújo. A seu modo, e porque vivem e experimentam cotidianamente uma violência que insiste em condená-los à marginalidade, ao risco, à precariedade, o coveiro Pazinho (Matheus Nachtengaele), sua namorada, a travesti Mariana (Tania Guanussi), Eneida (Nanda Costa), entre outros personagens que compõem o lúmpen que interessa ao olhar inquieto de Assis, sabem que a amizade é uma virtude que só se concretiza entre pessoas de bem, que ela não existe onde há crueldade, injustiça e deslealdade.

“Entre os maus há sempre uma conspiração, não uma companhia; eles não se entre-amam, mas se entre-temem; não são amigos, mas cúmplices”, escreveu o jovem Etienne de La Boétie, que foi amigo de Montaigne. Em seu “Discurso da servidão voluntária”, Boétie defende que a cumplicidade é baseada na desconfiança, desconfiança que é também renúncia da liberdade: para merecer a cumplicidade do tirano, é preciso, antes, servi-lo. A amizade, por sua vez, é baseada no amor, no respeito e na confiança, na igualdade entre os pares. Recusa do servir, ela é a condição da liberdade. Visto sob esta ótica, não me parece casual que seja a amizade, em “Febre do rato”, a alternativa possível ao estado de exceção em que estamos, em maior ou menor grau, enredados. E ela transborda por todo o filme: erótica, alegre, sensual, despojada, desbocada, chapada.

Em uma leitura a contrapelo de Giorgio Agamben, o historiador francês Georges Didi-Huberman critica, no filósofo italiano, a ênfase que este dá à destruição da experiência na modernidade, ao ponto de “estabelecer uma espécie de equivalência desencantada entre democracia e ditadura”; recusando-se a ver, diz Didi-Huberman,  alternativa “à assustadora glória do espetáculo”, entendido este último como o equivalente, nas democracias contemporâneas, ao que foi em passado recente a submissão da massa aos regimes totalitários, não resta opção se não definir negativamente o povo e o que quer que ele represente. Contra a “cor sombria, cinzenta, de uma consciência infeliz condenada a seu próprio horizonte, a sua própria clausura”, Didi-Huberman opõe a claridade fugidia, o lampejo do vaga-lume: “Devemos, portanto, nos tornar vaga-lumes e, dessa forma, formar novamente uma comunidade do desejo, uma comunidade de lampejos emitidos, de danças apesar de tudo, de pensamentos a transmitir. Dizer sim na noite atravessada de lampejos e não se contar em descrever o não da luz que nos ofusca”.

Em “Febre do rato” as personagens vivem esta contraditória e corajosa experiência: marginalizados, condenados à exceção, eles fazem da sua existência, de seu cotidiano, uma experiência de recusa e negação – o de viver uma vida nua, desprovida de sentidos e significados simbólicos e reduzida à sua natureza biológica –, que se desdobra na afirmação de uma vida que quer ser plenamente vivida. Não se trata, por isso, de um filme otimista. Mas de uma narrativa que coloca em cena a resistência, a insubmissão, a alegria e a poesia. Elementos que fazem de “Febre do rato” um filme que aborda ainda, sob uma perspectiva única, a atualidade de nosso presente: poucas vezes na nossa história recente carecemos tanto de resistências e insubmissões, de alegria e de poesia. “Febre do rato” é um filme sobre a necessidade, corajosa e incontornável, de viver. É um filme sobre o lampejo dos vaga-lumes a contrastar e desafiar a escuridão cega das muitas noites ou o brilho ofuscante da luz.

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